Direito de propriedade e função social

Joycemar Tejo

Advogado pós-graduado

em Direito Público

11/ 10/ 13

O Jornal "O Globo", na esteira dos 25 anos da Constituição de 1988, lança uma série de matérias versando sobre a mesma. Na primeira delas, publicada em 29/ 09/ 13, com o sintomático subtítulo "Nas galerias, guerra de lobbies fez história", há o seguinte trecho: "Vinte e cinco anos depois da votação do direito à propriedade, o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), ex-líder da UDR, afirma que a reação dos fazendeiros teria sido violenta, provocando uma 'guerra de secessão', se a entidade não tivesse vencido a queda de braço contra as forças progressistas, barrando a possibilidade de desapropriação de terras produtivas".

Bazófias do deputado ruralista -que tem lugar cativo no campo mais reacionário do espectro político brasileiro- à parte, podemos utilizar esse trecho para tecer considerações sobre o direito de propriedade.

De início, podemos consignar: não há direitos absolutos. Caso existam, seriam aqueles referentes à própria pessoa do indivíduo, seu ser, sua constituição física e emocional; por isso autores classificam, como sendo absolutos, o direito de não ser torturado e o direito de não ser escravizado. Não é o caso da propriedade, decerto. Ao contrário da mentalidade liberal clássica, o bem, o objeto, valioso que seja, não integra a personalidade do indivíduo. É alheio a ele. Portanto, como qualquer outro direito (com a ressalva, não-unânime, citada acima), a propriedade também é relativa. Encontra limites em algo maior que ela, que é a supremacia da ordem pública.

A Constituição é clara nesse sentido. Diz em seu artigo 5°, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social; isso também é previsto no art. 1228, §1°, do Código Civil, o qual lembra que o abuso de direito constitui, ele próprio, ato ilícito (art. 187). Quando a propriedade não cumpre tal função social pode ser desapropriada (v.g. reforma agrária) ou, independente de seu uso, por utilidade ou necessidade pública (1)

Aliás: a propriedade não apenas pode ser relativizada, sendo afastada por utilidade e necessidade pública ou interesse social, como também sofrer restrições, como é o caso das impostas por direito de vizinhança e servidões legais, por exemplo. Restrições ao direito de propriedade são históricas. Voltando à Roma antiga, berço de muitos de nossos institutos jurídicos, Fiuza já dizia, sobre as restrições à propriedade: "Os direitos do dono sempre sofreram restrições. Dizer que em Roma eram absolutos e ilimitados indica, quando nada, pouco conhecimento da sociedade romana" (2).

Coloquemos em colisão a propriedade e a vida, por exemplo. A mentalidade liberal que citei acima dará prioridade àquela. Levando o individualismo às últimas conseqüências, não admitirá que alguém seja privado de sua liberdade de possuir, mesmo que tal posse influa em desfavor da vida alheia. Afinal, em tal ótica individualista, os indivíduos, sendo "seres 'independentes' e 'separados' entre si, merecem ser protegidos contra qualquer sacrifício que se pretenda impor-lhes em nome dos demais" (3). Em outras palavras, cada um por si.

Não é preciso apelar a consciências sociais profundas para se ter aversão a essa mentalidade. Mesmo dentro do espectro direitista -no republicanismo, por exemplo- esse liberalismo é atacado, e autores como John Rawls voltam suas cargas contra ele. Mas o individualismo não é apenas tema de filosofia política como também de psicologia- o egoísmo é algo como uma mancha difícil de tirar.

A nossa Constituição garante a propriedade, pois. Mas não incondicionalmente ou sem contrapartida; deve obedecer a seu fim social, sob pena de ser afastada em prol de valores maiores (4).

Notas:

(1) A diferença é a seguinte, utilizando os termos de Diógenes Gasparini em "Direito Administrativo": a necessidade pública pressupõe "situações anormais", cuja solução requer que o Estado adquira o domínio ou uso de bens de terceiros; a utilidade pública consiste em situações normais, com o mesmo resultado. Por fim, "de interesse social é a desapropriação em que o Estado, para impor melhor aproveitamento da terra rural ou para prestigiar certas camadas sociais, adquire a propriedade de alguém e a trespassa a terceiro".

(2) César Fiuza, "Direito Civil. Curso completo".

(3) Roberto Gargarella, "As teorias da justiça depois de Rawls".

(4) "Valores", que "atribuem uma qualidade positiva a determinado elemento", situando-se nos planos axiológico e/ou teleológico, conforme Humberto Ávila em sua "Teoria dos princípios".