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O eu acuso de Lukacs

 

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O EU ACUSO DE LUKACS

Prof M. ALEXANDRE LOBO

No prefácio de “Os dezoito brumário de Luís Bonaparte”, Karl Max afirma que a história se repete, uma vez aparece como tragédia e outra como comédia. Ele estava se referindo aos golpes que colocariam no poder Napoleão Bonaparte e anos depois seu sobrinho, Luiz Napoleão. Em 1936, a história poderia também estar se repetindo se um certo membro do partido comunista húngaro, residente em Moscou de Josef Stálin, desse ao seu texto “Narrar ou Descrever” o título de “Eu acuso”. Paradoxalmete, o acusado, um escritor parisiense, que passou a pão e alho na juventude, havia escrito um livro chamado “Eu acuso”. Tratava-se de um conjunto de cartas e artigos publicado no “Le Figaro” em defesa do oficial Dreyfus, acusado de ter entregue detalhes sobre material bélico francês a alemães por ocasião da guerra franco-prussiana. O camarada húngaro, Lukacs, acusava o escritor Zolá de trair a causa revolucionária proletária por fazer um tipo de romance catalogado com descritivo.

Para o Comissário do Povo, Lukacs, só há um tipo de arte, aquela que é ideologicamente comprometida. Não há aquela dicotomia entre a “arte pela arte” ou "a arte engajada”. Sendo todas as artes e todos os artistas produtos dialéticos de seu meio, não há nada que possa escapar de refletir o social. Mesmo que o artista não queira, sua criação está dentro das possibilidades concretas de sua realização. Esta se insere dentro de uma realidade social movida pelo conflito de classes. Neste sentido, o artista, portador de uma ideologia, passa a sua obra, mesmo que não queira, um determinado conteúdo ideológico. Simplificando, ideologia é um conjunto de idéias que servem para legitimar a classe dominante no poder e funcionam como uma visão distorcida da realidade.

Na visão do Comissário do Povo para Educação e Cultura do Povo húngaro, o não engajamento a uma causa social, a uma parte da luta de classes, transforma-se no engajamento da manutenção da ordem vigente. Não há saída, mesmo o mais descomprometido dos artistas está comprometido com o sistema em que vive.

Muito mais importante que o conteúdo que um artista queira expressar em sua obra, é a forma em que essa se expressa. Esta, que para o fruidor parece apenas um veículo, e por isso mesmo pode se tornar imperceptível, se impõe ao sujeito fruidor fazendo com que ele seja educado em uma determinada maneira de perceber a realidade.

O “grande erro” de Zolá e os demais naturalistas fora ter desenvolvido um tipo de romance descritivo. Lukacs, em “Narrar e Descrever”, divide o romance em dois tipos: um, o narrativo, em que o foco são os personagens que agem em meio ao acaso dos acontecimentos, e no descritivo em que o meio é o foco, as coisas são mais forte que o personagem. Para o narrar, o Comissário do Povo apresenta Leon Tolstoi, um escritor russo de origem aristocrática. Na comparação entre um tipo de romance ou um romancista e outro, Lukacs usa um episódio em comum: uma corrida de cavalos. De um lado, Naná, de 1879, a obra de Zola, que o responsabilizaria por agir, mesmo que inconscientemente, a favor do sistema capitalista e confabular para a vitória da classe dominante na luta de classes. Para o membro do Partido Comunista Húngaro, a corrida de cavalos em Naná serve para seu autor como forma de descrever “a moda parisense sob o Segundo Império1” não tem nenhuma ligação com o tema central além do nome de um dos cavalos que é o mesmo da protagonista. Em Ana Karenina, de Tostoi, ao contrário, a corria de cavalo alcança um drama psicológico aparecendo como o “ápice de um novo dia”2. De um lado, temos então o romance descritivo e reacionário de Emile Zolá. Mesmo que o conteúdo de sua obra tratasse de temas que pudessem interessar aos revolucionários representantes do povo por colocar em cena os pobres despossuídos, não servira para a causa revolucionária pela forma em que foi construído. A descrição, para Lukacs, apenas constrói imagens em que os personagens se misturam e se confundem com o ambiente. Pacificamente, os seres são apenas resultado do meio, e assim, não há como eles agirem e se rebelarem com a ordem vigente. Descrito, tudo tem o mesmo nível de importância, não há passado e nem mudança e a obra vira um amontoado de episódios. O desserviço para a revolução ocorre por que leva ao leitor a senssação da impossibilidade de reação, uma vez que tudo não passa do reflexo do meio. Já na narração, ao contrário, para Lukacs, os personagens saem da passividade em relação ao meio ante o acaso que representa a multiplicidade de possibilidades, não são meros espectadores. É através da ação humana que o romance se desenvolve. A contribuição da narração para a revolução seria a de revelar ao leitor que ele é um agente social e que o meio em que vive pode ser transformado.

O Comissário do Povo entende que dois fatores foram responsáveis pelo caráter reacionário da obra de Zolá: um, o fato do parisiense ter uma origem humilde o fez vender a sua obra para o mercado e adaptar-se ao gosto burguês. Já o aristocrata russo, mesmo fruto de uma categoria social decadente, a nobreza, não necessitava da venda de sua obra para a sobrevivência. Outro fator teria sido o contexto histórico. Enquanto Zolá vivia um capitalismo já consolidado, e, talvez na visão de Lukacs, imutável, Tolstoi estaria vivendo a emergência de uma sociedade burguesa em uma Rússia arcaica que só teria o fim da servidão em meados do século XIX.. Entretanto, o capitalismo russo não se consolidou, nem mesmo existiu de forma plena até a época do teórico húngaro.

Mesmo que concordássemos com o Comissário do Povo para a Educação e Cultura a respeito da precaridade da descrição da corrida de cavalos em Naná em realção a de Ana Karenina, não podemos deixar de notar uma certa semelhança entre os casos de Zolá e de Dreyfus. Ambos são acusados injustamente por um detalhe ante uma infinitude de possibilidades. O primeiro por um detalhe de sua obra, pois Lukacs em seu artigo não analisa a totalidade deste, nem mesmo “percebe” que o vendido autor ao mercado capitalista teve que se exilar na Inglaterra ao defender Dreyfys. O segundo, pela letra que era semelhante à do documento achado. Ambos foram discriminados, um pelo Comissário do Povo por sua origem humilde, outro, por ser judeu. O julgamento de Lukacs foi teórico, mas Dreyfus foi diversas vezes condenado e o Exército se recusou a reabilitá-lo mesmo depois de descoberto o verdadeiro responsável pelo documento que revelaria aos alemães detalhes das armas francesas.

Curiosamente, um dos dramaturgos mais engajados politicamente da primeira metade do século XX, Bertold Brecht, acusado de ensinar marxismo em sua obra, estabeleceu Zolá e o naturalismo como uma das origens de seu teatro épico. O Teatro épico, assim como o romance descritivo denunciado por Lukacs, tem como centro o meio, o ambiente, uma determinada situação e não os personagens. O que importa neste tipo de obra não é a simpatia despertada no fruidor, mas a possibilidade deste buscar respostas a problemática que a obra possa despertar. É o efeito estranhamento que seria responsável pelo estímulo à reflexão.

Os pobres, operários, prostitutas têm vez no teatro épico assim como no naturalismo de Zolá. Sua obra Germinal é uma das primeiras a ter como protagonista um operário. De certa forma, é uma mostra de que os despossuídos também fazem parte da história, não só personagens da burguesia ou da nobreza decadente. Etiene, operário intelectualizado, embora a compreensão da leitura de textos clássicos seja limitada pelo seu parco grau de instrução, e absorvido por um amor platônico, luta contra contra as adversidades materiais, a apatia de seus companheiros e consegue tornar-se líder de uma greve. O resultado é catastrófico, além da greve ser um fracasso, muitos de seus companheiros morrem em um desabamento de uma mina de carvão. Apesar de tudo, Etiene não abandona seus ideais.

Em Naná, assim como o em Germinal, somos obrigados a concordar com o Comissário do Povo, de forma democrática, independente da origem social, a maior parte dos personagens são animalescos, em certos momentos, guiados pelos seus instintos sexuais são levados a perversidade. Adúltero e traído, o conde Muffat, personagem medíocre, embora alto funcionário do governo francês, em sua paixão doentia por Terezinha Naná, vai aos poucos experimentando a decadência moral, aos poucos vai se sujeitando aos caprichos da protagonista e torna-se apenas mais um entre vários amantes. É reveladora a afirmação de Naná em relação a esposa de Muffat: são as mulheres direitas da sociedade que roubam os clientes das mulheres perdidas da rua.

Naná está longe de ser um personagem que cause simpatia. Ela é símbolo da desumanização provocada pela pobreza. Sua futilidade é extrema a ponto de colocar diamante no fogo para ver se queima mais que carvão. Não é uma mãe exemplar, longe disso, seu único filho morre em conseqüência do abandono da mãe. Mesmo em seu único suspiro sentimental é egoísta, leva com sua paixão por um ator do Teatro das Variedades toda a sua fortuna acumulada enquanto seu filho continua a ser criado pela sua tia. Entretanto, assim como Etiene tem uma postura platônica e idealista, há personagens aparentemente periféricos na obra que contradizem a postura determinista de Naná. Exemplo disto é sua eterna empregada Zoé. Esta, permanece fiel a Naná durante quase toda a obra e só sai de cena quando resolve trocar de posição, ascender socialmente e abrir um negócio, deixar de ser empregada para ser empregadora. É este personagem secundário uma mostra da possibilidade de reação ao meio.

Ao contrário do que quis mostrar Lukacs, a obra de Zolá é sim contextualizada historicamente, não está no éter atemporal. Germinal, de 1885, está situada entre a Primeira Revolução Industrial e a Segunda, em um momento histórico do nascimento do movimento operário. Naná, apesar da alienação dos personagens, por sua vez, passa, mesmo que de fundo, pela Guerra Franco Prussiana, em que os ingleses, grandes industriais, apóiam os franceses, após séculos de rivalidades, para evitar que as as nações germanas se unifiquem e se tornem uma grande nação industrial. E é exatamente o que ocorre enquanto o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Napoleão III, é feito prisioneiro.

As mudanças ocorrem sim, mas por que tem que ser o narrador o indutor desta percepção aos fruidores da obra? Por que este narrador, com sua onisciência, tem que revelar ao leitor o caminho percorrido pelos personagens? A obra de Zolá não é um discurso fechado como queria o Comissário do Povo. Zolá não nos induz a solução dos problemas sociais. Aparentemente não há saída, Etiene é vencido pelo capitalismo e Naná teve sua alma devorada por sua pobreza. A Comuna de Paris, primeira experiência socialista, havia sido derrotada anos antes das referidas publicações de Zolá e é o que vai suceder ao episódio da morte da protagonista. Também não há saída para a espécie humana, burgueses, aristocratas e proletários estão presos a sua condição animal, o ambiente parece vencedor em relação a tentativa de instaurar a civilização. Mas a denúncia da exploração, das precárias condições de vida dos operários e dos explorados em geral não pode ser considerado como mero retrato apático. A denúncia também pode ser provocativa. Não é papel do literato trazer soluções para problemas sociais e nem fazer uma obra como manual. Há elementos na obra de Zolá que mereceriam mais cuidado, uma apreciação atenta, que fosse além de uma análise da descrição de uma corrida de cavalos ou de um palco de teatro. A própria questão da contextualização pode ser reveladora. Por que a obra Naná inicia e termina com a referência a Guerra Franco-Prussina? Zolá não responde, sua obra não é fechada, não é um discurso teórico sobre a revolução. Mas a própria discussão levantada para tentar responder às questões que poderiam ser feitas à obra já é, por si, uma mostra da esperança de tirar o leitor da apatia da simples apreciação.

Se Zolá pôde ser datado por Lukacs como resultante de um momento em que o capitalismo estava consolidado, e por isso sua obra podeira passar a idéia de imutabilidade, o próprio escrito de Lukacs poderia também ser datado no da Era Stálin, em que os crimes cometidos para a consolidação do poder do Comissário Supremo só seriam revelados décadas depois.

BIBLIOGRAFIA:

LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

LUKÁCS, Georg. Arte Livre ou Arte Dirigida? Revista Civilização Brasileira. Ano III Nº 13 Maio, 1967. p159-178.

ZOLÁ, Émile. Naná. Trad. de Marina Guaspari. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.

ZOLÁ, Émile. Yo acuso. http://www.librodot.com/searchresult_author.php?authorName=Z

1Lukacs, 1965. 47.

2Op. cit.