Tão Longe, Tão Perto

Alexandre Lobo

Aqui não há anjos sobrevoando a cidade, nem mesmo é Berlim dos anos 60 ou 70. Entretanto, existe um muro. Sim, um muro, não visível, não material, que ocupa lugares não necessariamente determinados. E o que ele separa? Formas de vida, linguagens, maneiras de vestir e comer, gostos e desejos. Sua presença é tão forte que muitos de nós nem ao menos o percebemos...

Este, sem dúvida, não é um muro igual aos outros, talvez exista desde os primórdios da humanidade, e, se fosse filmado em ação certamente seria em preto e branco. Ele está em todos os cantos e assume diversas formas, tamanho, espessura e altura, mas em um lugar específico revela o paradoxo da realidade na distância entre o ato de pensar e o de sentir, o fazer e o falar. Não se trata das instituições políticas, seria demasiadamente óbvio. O lugar referido encontra-se em meio a uma área verde. É o paraíso da produção do saber, até tem seus Pantões. Nas proximidades, uma mostra de como vivem a maior parte dos brasileiros em suas favelas. :

O muro separa dois mundos, entre diversos outros, que se misturam mas não há toque, falam mas não se comunicam. De um lado, democratas, aristocratas, liberais, socialistas, togados e aspirantes a toga, do outro, porteiros, obreiros, assaltantes, faxineiros, desempregados e candidatos ao cárcere. Algumas linhas de ônibus, um lago e uma escadaria separam fisicamente estes mundos. Esta é uma divisão visível, aparente, empírica, imediata e territorial, mas ela é apenas um símbolo do muro.

Do lado do muro em que me encontro, recebemos visita de alguns dos de lá, embora não os visitamos e só percebemos suas existências quando os vemos frente a frente. Eles estão aqui por motivos diversos dos nossos, para eles, o que vale é a sobrevivência imediata, vendem-nos balas doces e vasos de barro. Nossos motivos para estarmos aqui se projetam no futuro: uma profissão, um emprego, a pequena burguesia... Alguns deles até trabalham para nós, e, é bom lembrar que a alguns anos atrás haviam analfabetos e semianalfabetos preenchendo o quadro de funcionários da nossa tão honrada instituição produtora de saber.

Nosso mundo é amplo, entre nós, há os que discutem a possibilidade de existência ou não de um ponto de contato entre duas paralelas, outros, como se calcula o índice de desemprego. São vários os assuntos possíveis e as bibliotecas estão fartas de livros. Pertenço a um grupo que discute coisas como a existência ou não de classes, e, para alguns de nós, nossos vizinhos de muro só existem se engordam os números estatísticos. Muitos estão preocupados em mostrar como é possível mudar a sociedade injusta e desigual, embora queiram permanecer no mesmo lado do muro. Outro lado é feito objeto de nosso revolucionário estudo (e também uma fonte de renda financiada por ambos lados). As pulsações, angústias ou paixões dos do outro lado do muro são transformados, por nossas mãos, em letras, palavras e centenas de folhas. E o que lhes damos em troca? Desculpas em nome da objetividade e neutralidade, requisitos básicos do fazer científico.

Aqui, entre árvores e livros, tecemos a modernidade e projetamos o futuro tecnológico. Discutimos Sartre e Marx após leitura de meia dúzia de textos fragmentados para saber como vive o homem real. Sentimo-nos progressistas enquanto reproduzimos relações feudais que garantem nosso pão de cada dia. Ser progressistas é progredir em nossa bela carreira? Do outro lado, o café requentado, o sebo no almoço, arroz e feijão, a cata de alimento no lixo, tudo misturado com cheiro de esgoto, tudo é contraposto ao nosso "homo celulose" como meio de testá-lo.

Passando o muro, vemos nosso objeto de estudo, nosso vizinho incógnito, possível protagonista de nosso filme. Entretanto, o que dele realmente percebemos é um fragmento, como a câmera do vídeo que busca eternizar uma imagem, recorte de uma visão mais ampla, ao selecionar um momento sem passado e sem vivência. O outro se torna abstração, diluído em números e teorias. A distância é mantida, ambos lados do muro permanecem os mesmos, ainda que o espaço de delimitação possa ser rompido. Não há nenhum compromisso entre nós, e, ao final de nosso trabalho, podemos respirar com a sensação do dever cumprido...