O homem cordial

O Homem cordial

Prof. Dr. Alexandre Lobo

O que é o homem cordial? Embora haja um capítulo em Raízes do Brasil intitulado “O homem cordial”, não há uma definição de dicionário e nem uma conceitualização didática. É no contexto da obra que podemos extrair uma definição. Em linhas gerais, Homem cordial é fruto da colonização portuguesa. A colonização litorânea se deu pela “lei” do pouco esforço. Pouco partidário da ética protestante calvinista e seu trabalho árduo, impulsionado pelo Metalismo do enriquecimento pelo extrativismo, o colonizador era pouco intencionado em produzir, interessado apenas em explorar, o português, no primeiro século de colonização, não ousou entrar no interior, mas buscou adaptar-se ao meio.

Somente após a crise do açúcar no final do século XVI é que os bandeirantes ousam ultrapassar o litoral e atravessar o Tratado de Tordesilhas em busca de metais e índios para o trabalho na lavoura de milho. Inicia-se uma nova fase na história social brasileira. Mas nem por isso houve uma ruptura com o legado lusitano. É somente com D. João que temos as nossas primeiras faculdades. Disso resultou uma elite econômica pouco ilustrada e que tinha aversão ao trabalho manual, este, associado ao trabalho escravo, portanto, de “gente inferior”. É o “Tiradentes” o condenado na Inconfidência Mineira. O estudo na sociedade estamental funcionava como mais um fator de diferenciação entre os estamentos. O conteúdo de um texto pouco importava ante um amontoado de palavreado difícil. Era a cultura ornamental e bacharelesca. É desta forma que é possível entender como uma sociedade escravocrata poderia ser defensora do liberalismo ou como um golpe militar para deter supostos avanços ao socialismo poderia se considerar revolucionário

Também é pela lei do pouco esforço que o homem cordial prefere sacrificar sua capacidade de exercer a cidadania em troca de alguns favores. O favor, na cordialidade, tem papel de aliviador de tensões. É um benefício concedido pela parte detentora de poder a um subordinado. O cordial não é apenas o bondoso, o bem feitor ou o amigo fiel, não é apenas aquele concede, amas também aquele que recebe o favor. Ser privilegiado é uma forma de distinção e aparente esperteza. Em uma escala hieráquica, todos ganham uma vantagem, todos burlam, de forma ou de outra, as regras, assim, há um comprometimento generalizado com o sistema de favor. A cordialidade não é apenas uma forma de relação entre subordinados e superiores, mas uma cultura, uma prática que se mantém pervertendo a idéia de democracia e igualdade.

Individualista e personalista, o homem cordial torna o que seria público uma extensão de seu patrimônio. Se ocupa um posto público de comando, seu trabalho transforma-se de obrigação a concessão. Não é o governo ou o estado que realiza uma política, mas o individuo. Os recursos públicos confundem-se com o privado como se determinada realização ocorresse a partir da partilha de bens particulares do governante. Não é o governo ou o Estado que realiza uma obra pública, mas o indivíduo que se esquece do lugar em que ocupa. O usuário do serviço publico transforma-se de cidadão, aquele que tem direito à cidade, à cliente.

Avesso ao trabalho árduo, com visão de curto prazo mas sem percepção das conseqüências a longo prazo, esse é, em linhas gerais, o homem cordial. Defensor da democracia, da liberdade, seu discurso não condiz com sua prática. Para os dominantes, trata-se de uma forma de permanência e legitimação do poder por meio da amizade, da cordialidade e da distribuição de favores. Diferentes favores são distribuídos a subordinados diferentes. Do outro lado, trata-se de amenizar a dominação, da recepção de migalhas do que seria direito ou mesmo de privilégios em relação outros do mesmo nível que tornam a ausência de reais direitos mais suportável.