Infância Roubada

Texto escrito originalmente para 

Jornal Expressão Universitária nº 14 agosto 1996.

Retratos do Brasil III - Infância Roubada

Alexandre Lobo

A irreversibilidade dos fatos e o desencadeamento de acontecimentos desconexos. aparentemente sem nenhuma explicação lógica. Era constante em sua mente a ideia que nada tinha a perder, realmente. desde seus primeiros suspiros neste mundo, NADA tinha a perder e isso lhe era muito claro, talvez a única coisa que tinha certo em sua mísera existência.

Sua história, pode-se dizer com uma certa doze de crueldade, era demasiadamente comum em seu meio. Aos seis já cheirava loló na praça da matriz e praticava pequenos furtos. Várias passagens pela FEBEM, várias trocas de experiências. Aos onze já vivia na rua, não queria mais apanhar do padrasto. Agora aos quinze, descobria-se portador do vírus maldito que lhe deixava marcas por todo o corpo. Feridas abertas cobrem-lhe a pele mas não acompanham a moda da roupa, uma camiseta vermelha com a gola já toda puída e um jeans que de tão sujo parecia cinza amarelado.

Não poderia perder a chance de viajar na “enterprise", conseguira trocar o tênis furtado pelo ácido. Preparou-se para a droga das boas. As mãos trêmulas, o medo de algum policial frustrado. Final do dia pôr-do-sol na praia do Lami. O belo dia promete auxiliar no efeito. As margens do Rio Guaíba ele crava a agulha numa veia de seu braço esquerdo. A ansiedade aumenta e lhe tira as forças. A agulha quebra. Pânico. Que fazer? Esperar pelo efeito da droga? A agulha encravada no braço. Suas pernas parecem anestesiadas. Caminha pelas ruas sem saber exatamente para onde. O braço dói, resolve procurar um posto de saúde para tirar a agulha.

Uma hora depois, chega ao posto de saúde. Por pouco não encontrou fechado. Não quiseram atendê-lo, não por que não era morador do bairro, mas por uma ameaça de escândalo, encaminharam-no ao setor segurança de curativos. A enfermeira faz o diagnóstico a primeira vista, não o de agulha, mas das feridas, algumas com sangue ainda úmido. Medo de contágio

A doença irreversível exposta naquele adolescente mal cheiroso. O contato pele a pele. A proteção da luva. mas se a agulha rasgá-la? Aquele garoto valia o risco? Teria que procurar a agulha já dentro do braço, talvez cortar a pele para poder puxar a ponta.Certamente escorreria um pouco de sangue que iria sujar o uniforme branco lavado no dia anterior. O sangue contaminado. Embora não tivesse certeza quanto estar livre do vírus, a enfermeira sabia pelo menos que o sangue era transmissor da doença. Ela ficou por uns instantes absorvida entre o medo e sua própria ignorância, olhando aquele garoto desesperado em fase visivelmente terminal A enfermeira teria possivelmente muitos anos de vida pela frente e resolve não atender o garoto. Chama o segurança e diz que não sabe como tirar a agulha. O garoto é posto na rua. Este momento é quase uma síntese de toda sua vida e ele caminha pelas ruas.