Tristes Praças

Texto original em

Expressão Universitária n°18 -OUTUBRO 1999 pg 09

Alexxandre Lobo

Aquela praça é uma espécie de síntese da cidade de Porto Alegre. É eclética, sem dúvida, principalmente nos meses de novembro, feira do livro, época de saber e prazer.

Não, decididamente não se trata de um olhar antropológico, mas talvez antropofágico. Como se fosse possível,ponho-me na qualidade de simples observador. Mas todos sabemos ser isso impossível. Entretanto, não sou impedido de reter imagens, impressões. Fragmentos. Retratos da vida, mas momentâneos. Sentimentos, Tudo faz parte de minha memória alimentada pelo parco frio deste inverno e de uma dose de solidão.

Voltemos a praça. Personagens cotidianos, transeuntes alheios. Uma velha mulher. Na boca, a marcante ausência de dentes. Rosto carregado de base, lábios demasiadamente vermelho. A espera incansável de cliente. Qual o preço daquele decadente prazer? Pode durar horas, dias... E o. que há por traz? Uma criança? Um marido? Um homem? Talvez a surra do gigolô. Mas ela não está sozinha no ramo. Que idade teria sua companheira? Ela mente pra fugir do juizado de menores. Pais bêbados. Violência familiar. Certo, vemos isso todos os dias na televisão. Já é algo banal, estamos acostumados.

A jovem caminha por entre as árvores da praça. Foi estuprada pelo pai ou padrasto. Não. Ela foi violada pela nossa indiferença. Sim, também pela miséria física é espiritual de nossa sociedade desigual. Cada cliente pode ser portador do futuro. E o futuro pode não passar de um pouco de comida ou o trágico caminho da lenta libertação da alma em relação ao corpo.

Diálogos, rápidos, frios, matemáticos, mercantis. E que quem saber de nomes? Aqui, ninguém tem nome próprio, todos são substantivos comuns. Para marcar, a imagem tem de ser forte, causar algum sentimento. E logo após, ser consumida. Mas, para valer, ela tem de atingir as estruturas das formas de pensar, tem de transcender ao simples sentir do globo ocular.

A espera do tempo, velhos sentados nos bancos da praça. Para muitos, a consciência de que pouco resta a fazer a não ser esperar. O jogo de damas, companheiros eventuais. Lembranças. Remorsos. Pecados: Esquecimento.

Desvio de desejos sexuais. Objetos de desejos não previstos.

Meninos de rua. Ou da rua. Ou na rua. As palavras também tem sua força. Elas podem construir imagens. Jonas, Jorge, João, José. Não imporá. Loló, cola de sapateiro sem sapato. O futuro é apenas uma palavra no dicionário. Olhares travessos ao cliente involuntário. Passos rápidos. Crianças se dispersam na multidão. Um tênis novo ou uma carteira de identidade. E quem pode prever o resultado da colheita diária?

Camelôs em seus pontos. Sem assistência e nem previdência. Incerteza.

Trabalho exposto ao clima, à chuva e ao sol. Engraxates, um real, dois reais.

Graxa. Flanela. Sapato. Bota. Trabalhadores não assalariados, filhos do Brasil.

Nem tudo é tão nublado. Em novembro, a praça muda de tom, esconde um pouco de seu lado cinza. Bancas, livros e bares. Estudantes compram palavras impressas. Mais pessoas circulam. É possível saber com bastante segurança um pouco mais sobre a prostituta. Uma nova tese, recomendada e editada por uma importante universidade.

Romances distraem-nos nas tardes de sol. Um mundo letrado. Pensamentos positivos e autores consagrados. Acontece que a praça não muda realmente, ainda é a mesma, apenas convive com uma outra praça. Ambas ocupam quase o mesmo espaço embora uma tenha sido invadida pela outra.