Da necessidade de se conhecer a Constituição

Joycemar Tejo

Advogado pós-graduado

em Direito Público

O Direito é a organização da vida social (Clóvis Beviláqua). Não há sociedade sem Direito, não há agrupamento humano sem regulação, mínima que seja; como diz o brocardo latino, ubi societas ibi jus, onde há sociedade, aí está o Direito. Inclusive na ausência de Estado -como na sociedade comunista do futuro- o Direito subsiste, mesmo porque o Direito estatal ("posto", como diz Eros Grau, escrito, positivado, oficial) não é o único Direito: há costumes, valores e princípios não escritos que igualmente desempenham esse papel de regramento da sociedade.

   

Nas sociedades modernas há a prevalência do Direito escrito: leis, códigos etc. que reúnem os comandos que disciplinam a vida em sociedade. Também é assim em nosso País, onde predomina o Direito positivado, e não o costumeiro, também chamado de consuetudinário (1). As leis, todavia, não são todo-poderosas; ao contrário, estão sujeitas a um comando superior: a Constituição.

No passado, as constituições eram como "cartas de intenções", documentos de teor programático, com pouca ou nenhuma eficácia (2). Modernamente não é mais assim: as constituições têm caráter dirigente, indicando, mas, mais do que isso, determinando que o poder público cumpra com as necessidades sociais. O texto constitucional, portanto, deve ser levado a sério- se está lá, é pra ser cumprido, respeitado, observado, e não protelado para um futuro incerto. Ademais, a Constituição deve ser o filtro pelo qual todo o Direito deve ser interpretado; o texto constitucional é o norte de qualquer abordagem jurídica, desde por exemplo o cotidiano na Câmara dos Deputados a negócios entre particulares.

É fundamental, pois, que conheçamos a Constituição. É lá que estão todos os direitos rotineiramente desrespeitados pelos administradores públicos: saúde, educação, moradia, trabalho digno. É lá que o processo eleitoral tem previsão, com as diversas formas de participação popular- plebiscito, referendo. Lá também estão as garantias do devido processo legal e ampla defesa, da liberdade de expressão, a igualdade entre homens e mulheres (aliás, "entre todos"), a função social da propriedade, a defesa do consumidor, o princípio da presunção de inocência etc. etc. Tudo na Constituição, enfim, que erige o princípio da dignidade humana a fundamento da República.

Não se trata de adotarmos uma visão ingênua. As limitações intrínsecas à economia de mercado impedem que uma enormidade de direitos constitucionais sejam respeitados em sua plenitude, principalmente os sociais (2ª dimensão de direitos humanos) e os de solidariedade (3ª dimensão). Isso não impede que sejam pleiteados, mais do que isso, exigidos, cobrados- justamente para que, face a eventual inviabilidade, se denuncie o caráter do sistema. É inviável porque o sistema não deixa. Renunciemos aos direitos fundamentais? Não, troquemos de sistema.

Quem quer que viva sob uma Constituição é seu intérprete. É a "sociedade aberta dos intérpretes" da qual fala Peter Häberle (3): interpretar a constituição, conhecê-la, propor soluções à luz dela, não podem ser privilégio de uma elite. Ao contrário, qualquer indivíduo (o homem "comum") tem seu papel nisso. Mas enquanto a Bíblia é conhecida de cor e salteado, a Constituição segue uma ilustre desconhecida. Quando não se conhece seus direitos, fica mais difícil lutar por eles.

Notas:

(1) Os costumes, todavia, têm seu peso. Além do Direito não se limitar àquilo escrito - conforme a abordagem pós-positivista- a própria lei escrita faz referências diretas aos costumes, como se vê por exemplo no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, antiga Lei de Introdução ao Código Civil.

(2) Luís Roberto Barroso, "Curso de Direito Constitucional Contemporâneo". Conforme o mesmo autor, o reconhecimento da força normativa das constituições é o marco teórico do neoconstitucionalismo.

(3) "A hermenêutica constitucional de Peter Häberle" - http://bit.ly/WsSAlt