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Pra não dizer que não falei de alegrias

 

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Pra não dizer que não falei de alegria

Alexandre Lobo

Em um tempo em que o Brasil parecia estar inteligente, havia uma nuvem escura pairando sobre o país e uma atmosfera de ar rarefeito. Era a ditadura militar. Sindicatos e entidades estudantis haviam sido fechadas. A sede da União Nacional dos Estudantes fora metralhada. Mas o pior ainda estava por vir, seria o Ato Institucional Nº 5, ampliando os poderes da polícia e sua prática arbitrária. A Indústria Cultural de um Brasil Novo, com direito a tudo Novo, Cinema e Bossa, abria espaço para tendências diversas. A esquerda e a intelectualidade em geral só aceitava o que fosse de protesto. Mesmo assim, ainda havia uma certa liberdade de expressão. É nesse contexto que aparece Caetano Veloso e sua trupe tropicalista, como uma metralhadora giratória criticando a tudo e a todos, sem lenço vermelho e sem documento.

Record, Bandeirantes, Tupi, Globo e Excelcior eram emissoras de televisão abocanhando o novo filão da venda de Long Plays, os Festivais da Canção. Canções como “Disparada” e “Pra não dizer que não falei de flores”,de Geraldo Vandré, eram as preferidas do público esquerdizante. Mesmo acusadas por alguns de simplistas e fazerem parte da incipiente indústria cultural brasileira, convocavam para a resistência ao golpe de Castelo Branco e sua turma. E lá estavam também Gilberto Gil, cantando um assassinato num parque, Caetano Veloso, mandando quebrar tudo e Chico Buarque, vendo a banda passar.

Esses festivais ocorreram na segunda metade da década de 60, situados no surto de industrialização e urbanização resultado das políticas de Vargas e de Juscelino Kubisschek, destinavam-e a um público intelectualizado de classe média que em parte havia sido educado ou participado clima do discurso nacionalista popular e defendia a “genuína cultura brasileira”. A esquerda, em geral, pensava nos termos da dicotomia nacional-imperialista ou povo-setor agrário.

Na chamada linha evolutiva da canção brasileira, a tropicália era crítica à canção da corrente nacional popular, como também era conhecida a canção de protesto, defensora do povo brasileiro e da nação. Esteticamente, para os tropicalista, a canção deveria ser mais que sambinhas ou guaranhas tocadas em violão. Atropofagicamente, ela deveria “engolhir” a influência estrangeira, absorver e reciclar elementos como a guitarra para resultar em um tipo de música nova, evoluída e inserida na era moderna industrial. Nesse sentido, uma das raízes do tropicalismo era o antropofagismo de Osvald de Andrade1. O estrangeiro não deveria ser eliminado da formação do caráter brasileiro, mas ao contrário, absorvido, degustado.

Caetano era alegórico. Sua canção tropicália é recheada de alegorias. Essa alegoria tropicalista, para Roberto Schwartz2, acaba resultando na convivência pacífica do moderno e do arcaico, da pobreza e da riqueza. O resultado é uma atitude de aceitação ante o que parece invevitável. O moderno é simplesmente aceito, sem levar em consideração sua implicação, como se a “pobreza brasileira” fosse de todos os brasileiros, ou melhor, como se estes vivessem da mesma forma a experiência da modernização e os desvios desta não fossem responsabilidade de uma pequena parte dos brasileiros, mas simplesmente do curso da História .

Em “Alegria, Alegria”, no momento de comprometimento de parte do movimento estudantil e dos intelectuais com a denúncia contra a Ditadura Militar, Caetano Veloso prefere caminhar sem lenço ou documento, sem compromisso ou afinidade ideológica com parte alguma. De forma provocativa, o protagonista da canção toma uma coca-cola, bebida considerada símbolo do imperialismo. Este - ou o próprio Caetano - não é um completo alienado: “O sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas”, tem uma certa noção do momento, mas prefere não refletir sobre o assunto e assumir uma postura mais individualista: “Ela nem sabe até pensei em cantar na televisão. O sol é tão bonito.” O personagem de classe média - não tem telefone - percebe pelas fotos e nomes nos jornais os movimentos da ditadura, mas nada lhe afeta, nada é capaz de abalar seus amores vãos.

Herbert Marcuse3 nos fala da mulher vampiresca, da aberração e do diferente que, ao invés de produzir uma ruptura, acaba contribuindo com o sistema. O capitalismo, na sua estrutura auto-destrutiva do consumo - tudo é consumível, portanto, perecível, necessita do diferente como inovação, necessita do thânatos para manter a dinâmica. O excesso de excentricidade passa a ser vendável. Se no conteúdo pode parecer contestatório, na forma e na função, tudo é absorvido pelo sistema. O rebelde se transforma em mercadoria. Os discursos diferentes, em seus valores de troca, se equivalem em um pensamento único.

A canção “Proibido Proibir”, referência as agitações estudantis na França de 1968, é expressamente iconoclasta: “Derrubar as prateleiras , As estantes, as estátuas, As vidraças, louças, Livros, sim...” Se de um lado, proibido proibir, em ressonância com o que ocorria na França, pode ser interpretado como uma referência à ditadura militar, também pode ser entendida como uma referência à esquerda e sua patrulha ideológica que rechaçava tudo que não tivesse conteúdo didaticamente revolucionário. “`Proibido Proibir”, canção que custou a Caetano fortes vaias em um dos festivais, é um manifesto rebelde, como em “Alegria, Alegria”, não tem compromisso com nada, nem com as esquerdas guerrilheiras que o convoca, nem com o sistema repressivo.

Pouco tempo depois de Caetano Veloso ser vaiado pela esquerda no festival da canção, a ditadura de Costa e Silva implantaria o Ato Institucional nº 5. Parte desta esquerda entraria na clandestinidade da luta armada, outros seriam presos, torturados e assassinados. A imprensa experimentava uma implacável censura. Os tropicalistas, depois de serem presos, mas sem torturas, tiraram umas férias em Londres.

1RIDENT, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Record: São Paulo, 2000.

2SCHARWZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. In: Cultura e política, Paz e Terra: São Paulo, 2001.

3MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, Zahar,1967.