Sobre a teoria da separação de poderes

    Joycemar Tejo

                                                                                                                Advogado pós-graduado em Direito Público

O jornal "O Globo" de 18/ 12/ 2012 traz uma manchete inquietante, sobre os desdobramentos da Ação Penal nº 470 ("Mensalão"): "Supremo cassa deputados e adverte direção da Câmara". Inquietante, porque mostra o entusiasmo da grande mídia -em sua cruzada contra o PT, faces da mesma moeda que são- com a violação à Constituição, impetrada por aquele que deveria ser, justamente, seu guardião, o STF. Vejamos em que consiste essa violação.

A Carta Política (1) diz, em seu art. 2º, que os Poderes da União -Executivo, Judiciário e Legislativo- são harmônicos e independentes entre si. Isso quer dizer que há uma interrelação dialética: os Poderes não podem ser manietados pelos demais, mas isso não quer dizer que sejam absolutos, todo-poderosos. Esse equilíbrio se manifesta em diversas formas. Por exemplo, o Executivo interfere na atividade do Legislativo ao vetar projetos de lei (art. 84, V); interfere no Judiciário ao nomear os ministros dos tribunais superiores (art. 101, parágrafo único, art. 104, idem, art. 111-A etc.). O Legislativo, por sua vez, tem sua ingerência sobre o Executivo ao, por exemplo, julgar o Presidente por crime de responsabilidade (art. 52, I) e fiscalizar e controlar seus atos (art. 49, X), e sobre o Judiciário ao aprovar os indicados aos tribunais superiores (art. 101, parágrafo único etc.). Por fim, o Judiciário atua sobre os demais Poderes, ao julgar a constitucionalidade de leis ou atos normativos (art. 102, I, "a"), e, nas infrações penais comuns, o Presidente e os membros do Congresso (art. 102, I, "b"), dentre outras possibilidades.

Oportuno lembrar, a propósito, que "Poder" e "função", aqui, andam juntos, mas não se confundem. Assim, cabe ao Poder Executivo, de forma típica, a função executiva (administrativa), mas de forma atípica exerce as demais funções (por exemplo, exerce a função legislativa, ou normativa, ao editar medidas provisórias, e exerce função jurisdicional dentro de seus tribunais administrativos, em matéria tributária, por exemplo). O mesmo vale para os demais Poderes. O Legislativo atipicamente exerce função executiva (administrativa) ao gerenciar seu quadro de pessoal, por exemplo, e a jurisdicional ao julgar o Presidente por crime de responsabilidade, como dito acima. O Judiciário, por sua vez, administra (seu quadro de pessoal) e legisla (regimentos internos, poder normativo da Justiça Eleitoral etc.). De modo que o que há, na verdade, é a "sobreposição, e não partilha, das funções do Estado" (2) entre os diversos Poderes.

A teoria da separação de Poderes (com suas funções) tem raízes antigas, já sendo encontrada em Platão e Aristóteles, mas encontrando sua feição moderna nos debates que culminaram no constitucionalismo (fins de séc. XVIII) (3), através de nomes como Locke, Rousseau e Montesquieu. O objetivo é a independência contra influências indesejadas -arbitrárias inclusive- bem como melhor eficiência na prestação da atividade estatal.

No caso que citamos, há flagrante violação ao princípio da separação de poderes (que inclusive é cláusula pétrea, conforme o art. 60, §4º, III (4)) quando o STF pretende cassar deputados. O art. 15 da Constituição dispõe sobre a perda e suspensão de direitos políticos por condenação criminal transitada em julgado (inciso III). O art. 55, por sua vez, dispõe que o parlamentar perderá o mandato quando perder ou tiver suspenso os direitos políticos e quando sofrer condenação criminal transitada em julgado (incisos IV e VI, respectivamente). Porém, como se dará essa perda? É aqui que o Supremo afronta a Constituição. Tanto o §2º (que disciplina a hipótese do inciso VI) quanto o §3º (que disciplina a hipótese do inciso IV), do mesmo art. 55, determinam que a perda do mandato se dá na esfera da própria Casa legislativa. Como pode o STF, portanto, pretender "cassar" deputados?

Como falado acima, a teoria da separação de poderes busca, justamente, a garantia contra o arbítrio. Toda medida -venha de quem vier- que tente burlar isso deve ser repudiada, principalmente quando o que está por trás da burla é a disputa política entre os grupos dominantes, como é, claramente, o caso do "mensalão" e seus desdobramentos.

Notas:

(1) Carta Magna, Lei Fundamental etc. são alguns dos vários termos usados para se referir à Constituição.

(2) Guilherme Peña de Moraes, "Direito Constitucional. Teoria do Estado".

(3) Luís Roberto Barroso define o constitucionalismo em dois traços: supremacia da lei e limitação do poder. Supera-se aqui o Antigo Regime dos déspotas absolutistas e adentra-se na Idade Contemporânea.

(4) As cláusulas pétreas são o que alguém chamou de "núcleo constitucional intangível". É a parte da Constituição que não pode ser abolida.