Almodovar e o tipo latino

Alexandre Lobo

24/07/2022

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar nos brindou em seu último filme, o premiado "Tudo sobre minha mãe", com uma forma diferente de contar um velho tema: a caracterização do tipo cultural latino. Ao contrário de seus filmes anteriores, como "Carne Trêmula" ou "Ata-me", em que os personagens protagonistas são um delinquente e uma mulher com problemas sentimentais afetivos, em "Tudo sobre minha mãe" é uma mulher na busca de um passado após a perda de seu filho.

Sobre "Carne Tremula", em uma leitura ligeira, poderia ser dito que é apenas mais um filme de Almodóvar, com uma temática similar a "Ata-me": uma paixão caliente. Ao gosto do temperamento latino, um jovem de origem social humilde, digamos, um plebeu, apaixona-se por uma princesa fora de seu convívio social. Mas a paixão conduz o filme a um final feliz. No primeiro filme o protagonista é um ex-detento e sua paixão, uma ex-consumidora de drogas ilícitas. No segundo, um ex-paciente de hospício e uma atriz de filmes pornográficos. Ambos, por seus personagens, ferem a moral convencional e afastam-se dos filmes românticos piquenique com personagens bem comportados.

O que mais me atrai em "Carne Trêmula" é a fotografia. As cenas de sexo estão longe se serem pornográficas, mas carregam erotismo de boa plasticidade. O foco, os cortes, as cenas. Cortes sobre corpos em movimento. Curvas enchidas de carne, formas arredondadas dispostas de forma harmoniosa e equilibrada dificultam a identificação de que parte do corpo pertencem e revelam a beleza de cada fragmento do corpo humano.

Entretanto, "Carne tremula" apresenta algumas variações, tem um fundo político, o início do filme situa-se na ditadura franquista. O personagem que nasce em um ônibus, filho do proletariado, uma mãe solteira ou viúva precoce, tem como destino continuar a pertencer ao lado da Espanha pobre, contraposta a uma Espanha europeia desenvolvida. Tornando-se entregador de pizza, ele reproduz as condições sociais de seus genitores.

Uma paixão violenta é atravessada por um incidente que leva o entregador de pizza à cadeia. Um suposto rapto, como em “Ata-me”, e um tiro, sem autor definido, que torna um policial paraplégico, são as causas do infortuno de nosso herói. A trama desenvolve-se com paixões, invasões de privacidade e adultério. Amor impossível, o protagonista passa a trabalhar em uma creche pertencente à esposa do ex-policial paralítico. Relacionamentos desenvolvem-se e deterioram-se pela sensualidade e atração que um personagem desperta ao outro. Paixão, desejo e prazer misturam-se como pré-requisitos para a união. A falta de um elemento leva à miséria sexual. O desequilíbrio dos desejos entre os personagens leva-os ao adultério, e, deste, ao crime, para quem sentiu-se traído.

Nos personagens de Almodóvar, a paixão domina a razão. Também em "Tudo sobre minha mãe", temos o exemplo de latinidade numa personagem que, freira, engravida de um homossexual prolixo e soropositivo. O desejo vence barreiras até mesmo sociais. Se compararmos esses personagens e suas histórias com personagem germanos, como os personagens de Win Wenders, notaremos um sensível contraste. Neste segundo cineasta, as ações lentas, desenvolvem-se em conflitos existenciais. Os personagens, embora igualmente apaixonados, não sucumbem totalmente aos seus impulsos. Mais contidos, agem de forma mais racional, porém melancólica. O protagonista de "Paris Texas " percebe que seu amor impossível não tem mais sentido e escolhe a solidão.

Ao contrário do tipo latino, no tipo germano, a paixão mais próxima do platonismo, carregada de questões existenciais como a busca do sentido da vida e mesmo do sentido das condições de vida, sobrepõe-se ao erotismo. Anjos apaixonam-se por trapezistas, suportam a ausência do toque, da carne, do calor, apaixonam-se para além do desejo sexual. A transcendência das condições negativas à realidade nunca é alcançada, os caminhos são separados nos enredos frios. O tipo latino, por sua vez, frente à condições adversas, agindo mais por impulso, dá o toque quente ao enredo, e no final, consegue realizar suas utopias.

Não se trata de afirmar que nós de origem latina, somos todos mais humanos e avessos à razão, ao cálculo e que os germanos, ao contrário, são todos mais frios, porém racionais. Muito menos explicar tal diferença pelo clima, tendo o calor como impulsionador das paixões. Trata-se de retratar um estereótipo que é um reflexo genérico de uma cultura, e que em ciências sociais (ver Gilberto Freire em Casa-grande e senzala) já foi ultrapas­sado como explicação de nossa sociedade. O cinema é uma ilustração de uma cultura, reflete um tipo genérico, mas não tem pretensão explicativa e, assim, Almodóvar faz cinema conforme sua própria origem e influência cultural.

Texto originalmente publicado em Folha da História, em junho de 2000, Porto Alegre, Página 11.