O Direito como ferramenta de transformação

Joycemar Tejo

Advogado pós-graduado em Direito Público

A melhor definição de Direito, em minha opinião, continua sendo a de Clóvis Beviláqua: "organização da vida social". Pois, de forma sucinta e livre de minúcias, revela o verdadeiro papel do Direito: o de regulador das relações cotidianas. E, por ter sua razão de existir na sociedade, é condicionado por ela, tendo assim claro caráter superestrutural. O Direito, portanto, regula sempre determinado contexto histórico, justificando-lhe, não podendo nunca estar alheio ou à parte das relações de base, de modo que "a  legislação, tanto política quanto civil, apenas fez pronunciar, verbalizar o poder das relações econômicas" (1) (2).

Esse caráter superestrutural do Direito, contudo, não quer dizer que não possa servir de ferramenta de alteração da realidade. A relação "base x superestrutura" é dialética, se relacionam reciprocamente. A primeira é condicionante mas, jamais, determinante; a diferença é enorme. Direito, assim como a Religião, Filosofia e Artes em geral, tem seu papel na interpretação e, principalmente, transformação do mundo (3).

Isso se reflete, por exemplo, no trato com a Constituição. Já não pode ser mais concebida como uma "carta de princípios", um documento repleto de belas intenções. A abordagem neoconstitucional vai, ao contrário, reconhecer sua força normativa. O que está na Constituição está lá para ser cumprido. Pode, e deve, ser exigido dos poderes públicos- moradia, educação, trabalho, saúde, dentre outros direitos sociais que, caso não sejam respeitados, são pleiteáveis judicialmente (o que mostra a importância, dentro dessa ótica neoconstitucional, do Judiciário). Nesse sentido o clássico conceito de "normas programáticas" (4) -aquelas que indicam uma meta ao administrador público, sem contudo possuírem carga obrigatória- se mostra obsoleto. Pois, como se vê, toda norma constitucional tem força vinculante, na implementação do Estado Social, dimensão do Estado Democrático de Direito (5).

Não se pode, todavia, criar ilusões. O ordenamento jurídico é, repito, reflexo das relações de base; assim, por mais avançado que pareça e por mais que traga em seu bojo conquistas sociais, tem limites definidos. As mazelas da sociedade de classes são intrínsecas; um problema de sistema só se resolve com uma mudança de sistema. Porém, é possível desde já lutar para combater o déficit de concretização dos direitos fundamentais, utilizando para isso todas as ferramentas à disposição. Inclusive, limitada que seja, a legislação vigente.  O Direito é, portanto -conjugada com outras- ferramenta de transformação.

Notas:

(1) Karl Marx, "Miséria da Filosofia".

(2) Com a ressalva de que o Direito não se resume à "lei". Esta é apenas o "direito posto", como diz Eros Grau, coexistindo com o Direito "pressuposto", não positivado (escrito), produto direto da sociedade. Aliás: "norma" não se confunde com "lei". Aquela é mais ampla que esta. "Lei" (ou "regra") é o texto escrito, fruto da atividade legislativa. Vai conviver com outras normas, como os princípios, que nem sempre aparecem de forma escrita. É a fase pós-positivista (neopositivista) do Direito.

(3) Undécima Tese de Marx sobre Feuerbach.

(4) José Afonso da Silva, "Aplicabilidade das normas constitucionais".

(5) Miguel Calmon Dantas, "Constitucionalismo dirigente e pós-modernidade".