tudo que é solido desmancha no ar -m. berman
Prof. Me. Alexandre Lobo
Resenha de:
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo. Cia das Letras, 2008.
Capítulo
Marx, marxismo e modernização.
Neste capítulo, Berman analisa o Manifesto Comunista de Karl Marx como a primeira obra de arte moderna. Abrangendo o Modernismo e a Modernização, partes da análise sobre a Modernidade, o trabalho de Marx é uma referência para todos aqueles que tratam do tema, embora não seja explicitamente reconhecido como Moderno. O Modernismo é entendido como a parte cultural enquanto que a modernização, a parte econômico político da Modernidade.
A frase que dá título ao capítulo, Tudo que é sólido desmancha no ar, para Berman, mostra uma imagem síntese da visão de Marx do que seria moderno: um mundo em que tudo é pervertido ou passível de perversão, tudo está sujeito às transformações que desmancha tudo que é sólido, mesmo o que parece ser mais sagrado. A burguesia, agente da modernidade, tornou tudo vendável, dessacralizou a família e desmascarou a religião, tornou profano o que era sacro, tudo virou mercadoria, tudo pode ser vendido ou comprado e gerar lucro. Até mesmo a propaganda anticapitalista pode ser capitalizável se vendável. O próprio comunismo pode virar uma mercadoria.
A modernidade está associada ao desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes. É no momento da ascensão da burguesia ao poder que ocorre uma aceleração do desenvolvimento tecnológico e científico. O saber se desprende das amarras religiosas e a razão promove progresso. Por outro lado, a burguesia traz consigo uma nova classe que é também sua antítese, o proletariado, verdadeiro produtor de valor.
As necessidades do capital, mercado consumidor, matéria-prima para a produção e as aspirações humanas fazem com que ele se estenda, vença as barreiras do nacional e se internacionalize. Não há mais fronteiras territoriais ou sentimentos nacionalistas. Desta forma, em termos internacionais, temos a concentração das riquezas nas mãos de poucos, de burgueses cujo poder econômico não tem pátria. Burgueses estendem seus negócios para outros países e atravessam oceanos. Grandes empresas internacionais engolem empresas locais.
Para Berman, Marx não despreza a burguesia, ao contrário, a louva, pois ela cumpre seu papel histórico. Através de um processo revolucionário, pela primeira vez na História, a burguesia mostra que é possível transformar o mundo. Ela constrói um novo mundo em que não é mais o nascimento o responsável pelo posicionamento do indivíduo na hierarquia social, mas sim o fazer, o construir e o enriquecer. Teórica e legalmente todos são iguais, embora não o sejam em condições de exercerem tal igualdade. Ao contrário das sociedades tradicionais estamentais, sem possibilidade de transformações na hierarquia social, o destino dos indivíduos já estava decidido, uma vez servo, sempre servo. Na nova sociedade burguesa, embora as possibilidades concretas sejam escassas o operário pode sonhar em tornar-se burguês.
Ferrovias, prédios e outras construções nunca antes vistas são realizadas na sociedade burguesa. As cidades atraem as pessoas, a vida se urbaniza, suplantando o mundo agrário e bucólico de população rural. Outra grande contribuição da burguesia foi “libertar” a criatividade humana para a busca frenética da inovação sem limites. A concorrência capitalista impulsiona as transformações. É necessário vencer a concorrência, oferecer ao consumidor um produto novo, inovado.
Como o rei Midas, tudo que a burguesia toca vira ouro. A criatividade transforma tudo em ouro, capital, incluindo a própria destruição, tudo pode ser vendável, mesmo o que possa ser anticapitalista. Tudo deve ser inovado, nada permanecendo o mesmo para que a máquina funcione, caso contrário, o capitalista é ultrapassado por sua concorrência. A dinâmica deste sistema é a própria destruição. As mercadorias precisam ser trocadas por novas para que o sistema continue funcionando. Tudo deve ser consumido. O que parecer sólido e imutável deve desmantelar-se para que o novo se imponha, mas não de forma definitiva, o que é novo hoje será ultrapassado amanhã.
Por outro lado, este processo de transformação também é excludente, cria um grupo de pessoas que lutará para ter os benefícios do sistema que ajudaram a construir. Conforme diz Marx, o capitalismo criou duas classes antagônicas, a burguesia e sua antítese, o proletariado. As inovações tecnológicas criadas pela concorrência desenfreada e acumulação de riqueza terão que ser distribuídas entre seus reais produtores. O crescimento burguês é impulsionado pela concorrência, mas ocorre de forma descontrolada, o desenvolvimento tecnológico ocorre de forma desordenada. Esse desenvolvimento cria as condições de proporcionar a liberdade humana em relação à necessidade do trabalho, cria as condições do pleno desenvolvimento das capacidades individuas, sem amarras por questões naturais. Mas tal capacidade concentrada nas mãos de poucos gera uma pressão para a sua distribuição. É a luta de classes.
Dentro do discurso ideológico burguês, a contradição social deve ser apagada, esquecida, silenciada, e isso é feito pela apologia da realização individual, como se as riquezas fossem obra de indivíduos desassociados da esfera produtiva social. A nova sociedade, composta por iguais, coloca no indivíduo a responsabilidade por sua condição social na medida em que o pertencimento as camadas mais favorecidas é resultado do mérito pessoal.
O capitalismo produtivo constrói riquezas, mas deve destruí-las para usa própria sobrevivência, caso contrário, suas mercadorias não serão consumidas. Tudo que é feito deve ser desfeito para que se mantenha a relação produção-consumo. O que é comprado deve ser consumido para que continue havendo a compra, e, esta, deve estimular a produção. O lucro deve permanecer constante. Tudo deve ser constantemente transformado, destruído para dar espaço ao novo. A transformação passa a ter caráter permanente. O que parece ser crise é a própria essência da sociedade burguesa.
Outra contribuição da burguesia foi o rompimento com o sagrado. O rei tornou-se apenas rei, não mais um representante da vontade divina. A vida tornou livre de ilusões. A venda da religião que sacralizava o comportamento e a natureza foi tirada dos olhos pela burguesia. Jacobinos fecharam igrejas e mesmo proibiram cultos religiosos. A percepção da realidade já não é mais mediada por entidades divinas ou pela contemplação de um espírito elevado. A finalidade da vida humana desprendeu-se da renúncia aos prazeres ou a uma atitude meramente contemplativa. Essa é uma das esperanças de Marx: o proletariado, liberto da ilusão religiosa do sofrimento como purificação da alma, desenvolveria o sentimento de solidariedade de classe, libertando-se também do individualismo burguês, e passaria desta forma a defesa do comunismo. Esse indivíduo liberto do individualismo e da religião daria lugar a um Novo Homem. Entretanto, para Berman, uma das dificuldades seria o problema de este novo Homem vir com outras máscaras, outras couraças que poderiam esconder uma identidade do Novo Homem enquanto indivíduo. Este se diluiria na coletividade.
Enquanto sistema, tudo na sociedade capitalista está comprometido com o capital. Não há inocência na engrenagem da produção de lucro. A necessidade de transformação e inovação faz com que tudo se transforme em mercadoria. Até mesmo o que é produzido para ser contra o capitalismo pode tornar-se parte dele. É para seu princípio de autodestruição que a sociedade burguesa necessita incorporar o que lhe é contrário. É desta forma que é possível destruir o que está consolidado, diga-se, sólido, para abrir espaço para o novo.
Berman conclui o capítulo mencionado duas críticas à Marx: uma a de Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, que, embora sem citar Marx diretamente, o acusa de ter privilegiado o trabalho produtivo em detrimento de outras atividades humanas. Para essa crítica, Berman argumenta que na sociedade comunista o homem seria liberto das necessidades produtivas impostas pela lógica capitalista e poderia desenvolver outras aspirações, pois cada um ganharia conforme suas necessidades. A outra crítica vem de Hanna Arendt, em A Condição Humana que entende o comunismo como um amontoado de atividades privadas na coletividade, uma vez que o espaço público desapareceria com o fim do Estado. A realização dos desejos pessoais poderiam levar a um sentimento de futilidade coletiva. Entretanto, para Berman, ela não dá conta da solução a sua crítica a Marx, não responde o que seria um mundo de homens e mulheres fora do individualismo.
Lembra Berman, ao final do capítulo, que a solução dada por Marx ao problema do capitalismo da exploração do homem pelo homem não está fora da sociedade burguesa, mas sim dentro desta, a sua necessidade de transformação e autodestruição leva paradoxalmente a sua superação. A modernidade criou as condições para isso, fartura de bens, abundância de riquezas e uma forma de pensamento racionalista que responsabiliza o próprio homem por seus feitos.